quarta-feira, 17 de março de 2010

Um

Houve um tempo em que até os fogões tinham asas. Isso mesmo. Até eles. Tinham asas para acomodar mais panelas do que a lotação oficial permitia. Ficavam todas as panelas ali, uma ao lado das outras, esperando a vez de ir ou sair do fogo. Acho que uma ficava conversando com a outra, a caçarola trocando confidências com a frigideira, a chaleira se insinuando para o caldeirão, mas todas discutindo quem tinha recebido mais alho e cebola na hora do refogado e se isso era justo ou não.

Em alguma cozinha certamente chegou a haver uma rebelião de panelas: as grandes contra as pequenas, as altas contra as baixas, as novas contra as velhas. Sabe aquele dia em que as tampas caíram todas no chão? Foi briga. Mas isso porque elas conversavam, porque tinha um lugar para se reunir e confabular.

Se alguém souber qual é o coletivo de 'panelas', aceito contribuições. Sabendo ou não o nome, sei que isso existia. Até os fogões podiam se dar ao luxo de ter asas, de ocupar espaço na cozinha e de dar espaço para as panelas conversarem. Nos dias de hoje a censura é mais sutil, o que não quer dizer que seja menos eficiente.

Hoje meu fogão não tem asas. Nem lembra que seu avô tinha. As panelas também não discutem mais. Sabem que é melhor não criar problemas, senão vão para o lixo. Mas eu lembro de como era antes. E isso me faz lembrar que tenho asas também, embora às vezes até eu esqueça. Lembro que era muito bom discutir.

O problema é que ter asas, nos dias de hoje, é considerado algo velho, anacrônico, analógico, antigo e sempre me dizem que isso é chato. Texto e pensamento com mais de 140 caracteres atualmente são chatos. Se eu não reduzir, cortar, atrofiar, é chato. São os efeitos destes novos tempos de internet rápida, blackberries e cooktops (esse, coitado, não só esqueceu das asas que um dia teve, como também do forno. foi capado e ainda acha que é chique...). hoje em dia pensar, questionar, tudo isso é chato. Fazer pensar incomoda. Tomar posições diferentes das que já estão carimbadas incomoda. Mas as minhas asas insistem em bater, cada vez mais. Acho que é hora de voar. E quem achar chato, que fique em terra. Voar é muito mais legal.

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